Administrado por Dom Vito Alberti Lavezzo e Dona Kate Alberti Rossetti, arquivistas do Vaticano.

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Carta Encíclica - Bone Servis et Fideli

 CARTA ENCÍCLICA
BONE SERVIS ET FIDELI
DE SUA SANTIDADE
PAPA JOÃO II
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS PATRIARCAS,
ARCEBISPOS, BISPOS
E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM PAZ E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA,
AO CLERO E AOS FIÉIS
DE TODO O MUNDO CATÓLICO
 E TAMBÉM A TODOS
OS HOMENS DE BOA VONTADE
SOBRE A CORRUPÇÃO NO CLERO

A razão de todas as coisas

                1. “Servo bom e fiel, venha participar da alegria do seu Senhor.” (Mt 25,21) É dessa maneira que todos nós esperamos ser convidados pelo Senhor, quando chegar o dia do nosso julgamento. Cristo, o Senhor, nos interpela a seguirmos os seus ensinamentos, para podermos estar junto dele na eternidade.
Assim, habitarmos na morada eterna do Pai, se torna a razão de nossa alegria, de nossa vida, de todas as coisas.

I. A CORRUPÇÃO NA HISTÓRIA DA SALVAÇÃO

Adão e Eva: A corrupção do pecado original

                2. Mesmo olhando o final dos tempos, na explicação do próprio Jesus, vendo o seu chamado para participarmos de sua alegria, precisamos nos voltar ao inicio dos tempos na criação do mundo.

                3. Eva tem a tentação de provar o fruto do qual o Pai não havia permitido comer, pois era de agradável aspecto (Gn 3,6). O desafio para o povo de Deus naquela época era o de não comer o fruto, e por ter desobedecido, sofreu como consequência a expulsão do Paraíso (Gn 3, 23), e, por consequência, a morte.

Dilúvio: A corrupção dos homens

                 4. O Senhor vê que o mundo esta corrompido (Gn 6,5.11), e que não havia conseguido manter a obediência outrora pedida. Os homens seguiam cada qual o seu caminho, e haviam se esquecido do seu criador. Então, como consequência desta corrupção, vem o dilúvio para destruir (Gn 7,12).

Babel: A corrupção que leva a confusão

                 5. Até mesmo babel se torna um exemplo da corrupção. O Senhor havia ordenado que os homens e mulheres se multiplicassem e governassem a terra (Gn 1,28). Mesmo depois da condenação do dilúvio, os seres humanos não queriam dispersar-se pela terra (Gn 11,4),  desobedecendo a ordem do Senhor de governar toda a terra. Por isso, Deus os castigou com a confusão das línguas (Gn 11,7), para evitar que corrompessem com sua santa vontade.

Morar em Canaã: A corrupção leva a escravidão

                 6. Prosseguindo nesse seguimento de vezes em que o povo de Deus preferiu corromper-se, isto é, modificar a vontade de Deus, para viver sua própria vontade, vemos Canaã, que foi prometida pelo Senhor a Abrão (Gn 12,6-7). Mas Abrão não se confia na providência Divina, e quando chega a fome, saí da terra prometida e desce para o Egito (Gn 12,10).

                 7. O povo então no Egito, sofre com as consequências de não ter realizado a vontade do Senhor de estabelecer-se em Canaã, são todos feitos escravos do faraó (Ex 1,11).

Guardar a Lei: A corrupção dispersa o homem

                 8. O povo promete fazer tudo aquilo que o Senhor os havia dito (Ex 19,8). Mas o povo não cumpriu a Lei, desobedeceu ao Senhor, e corrompeu-se com adorações a outros deuses e diversos outros pecados (2Rs 17,7-20), por isso Deus dispersou o povo de Israel por toda a terra (Ez 36,16 19).

Receber o Cristo: A corrupção custa a morte de Deus

                 9. Compreender todas essas histórias de corrupção desde o antigo testamento é de extrema importância para compreendermos a corrupção do clero nos tempos atuais. Sobretudo, é preciso compreender a corrupção causada pelo não acolhimento de Jesus Cristo. Ele foi negado diante dos homens, abandonado em suas dores, e por causa do pecado do povo, foi golpeado, crucificado e morreu.

                 10. A consequência da corrupção dos homens em toda a história da salvação, é a morte do Senhor Jesus Cristo. “Quem se importaria com sua história de origem?” (Is 53,8), Ele era considerado apenas mais um homem, um bandido e assassino. Essa foi a consequência da corrupção do povo, o povo que novamente corrompia-se ao não aceitar Jesus; a morte de Deus. A pessoa do Filho precisa purificar a corrupção dos homens, pois sabia que todos estavam suscetíveis ao pecado, isto é, a corrupção.

II. A CORRUPÇÃO HOJE
Conceituando corrupção

                 11. É preciso realizar uma leitura de todos os textos colocados acima, para agora tratarmos propriamente do conceito de corrupção. Pode-se dizer, alguns, que tudo que expomos como corrupção não é, de fato, a corrupção que deveria ser tratada aqui. Mas como falarmos de um tipo de corrupção sem tratarmos de outro? Como tratarmos de corrupção meramente nos âmbitos agradáveis?

                 12. Segundo o Dicionário da Lingua Portuguesa, corrupção é: “Ação ou efeito de corrompe; Ação ou resultado de subornar (dar dinheiro) uma ou várias pessoas em benefício próprio ou em nome de uma outra pessoa; suborno; Utilização de recursos que, para ter acesso a informações confidenciais, pode ser utilizado em benefício próprio; Alteração das propriedades originais de alguma coisa: corrupção de um livro; Ação de decompor ou deteriorar; putrefação: corrupção das frutas; Desvirtuamento de hábitos; devassidão de costumes; devassidão.

Como é a corrupção hoje?

                 13. Partindo do pressuposto que não apenas a corrupção sexual ou financeira é corrupção, nos convém expor outras formas de corrupção presentes no clero.
É corrupção quando se pede cargos por meio de atos de calúnia, difamação, e reclamação dos irmãos. É corrupção quando busco amizades que possam me ajudar a crescer no clero. É corrupção quando vivo uma vida carreirista, deixando de viver aquela verdade que deveria viver. É corrupção ainda, quando devasso, isto é, numa falsa liberdade, difamo ou exponho Santo Padre, o Colégio dos Bispos e a Igreja.

                 14. Todas essas formas de corrupção nos fecham em nós mesmos, embora muitas vezes se diz ser pelo bem do clero, é falsa essa desculpa. Na verdade, o que já se cegou pela corrupção, não sabe ver nenhum bem senão o próprio, e muitas vezes se engana. Quantas vezes não vemos irmãos que estão tão cegos que acham que apenas os outros estão em estado de corrupção?

                 15. A corrupção é tudo aquilo que retira a essência de nossa Igreja. Ela transforma a nós e transforma a Igreja em motivo de chacota, em motivo da perda de fé dos irmãos. A corrupção, por fim, é aquilo corrompe a estrutura eclesial, e corrompe o próprio ser do homem, pois ele já não se abre mais ao ser que ele deveria se tornar, já que foi criado para o amor, e o corrupto não sabe amar.

III. A ANTIGA E A NOVA CORRUPÇÃO
Igualdade
                 16. Muito se assemelha a corrupção narrada na I parte dessa carta, e a corrupção nos dias de hoje. Em todas as fases da história do Povo de Deus, havia algo que deveria ser evitado, e ainda sim, em todas as vezes, o povo se deixou corromper. A corrupção sempre leva o homem a se fechar em si mesmo, pois é consequência do pecado e da falta de amor.

Graça
                 17. Hoje, conhecemos a verdade a libertação de nosso Senhor Jesus Cristo, e já não podemos viver cegos como vivia o povo do antigo testamento. Estamos no momento de nos abrirmos a graça, e deixarmos de lado a corrupção.

                 18. Permanecer fiéis à graça recebida! De facto, o dom de Deus não anula a liberdade do homem, antes a suscita, desenvolve e exige. [1]

IV. A CORRUPÇÃO TEM CURA
Corrupção é um câncer

                 19. Como todo bom tema perigoso de ser tratado, a corrupção no clero é como um câncer que se espalha no corpo. Mas, não se pode ver a corrupção sexual ou financeira como o único câncer espalhado no corpo. É extremamente fechada a visão de quem acha que essas corrupções são as únicas, ou mais, as piores.

                 20. Portanto, antes de prosseguirmos ao que é o cume dessa carta encíclica, que não quer mentir e negar a corrupção, e muito menos diminuir seus efeitos e suas consequências destruidoras, precisamos conceituar a corrupção de outra forma. A corrupção não é um simples pecado, mas é um erro como muitos pecados.

                 21. Corrupção é consequência da repetição de pecados, o que limita a capacidade de amar. [2] A corrupção está extremamente ligada ao pecado, pois ela é causada pela repetição de pecados. A corrupção surge quando o ser humano fecha os olhos e corações a ação de Deus. O corrupto perde as suas capacidades, não consegue mais servir a Igreja na gratuidade, nem ao outro, sempre busca algo em troca. Volto a repetir, nem sempre financeiramente. Muitas vezes apoio político, social, ou outros tipos de favores.

Tempos de crise

                 21. Nego a qualquer um que me diga que a Igreja passa por tempos de crise. Infelizmente, nos últimos tempos, tornou-se muito comum falar de crise. Mas nem tudo é tempos de crise. Há, de fato, pequenas crises, causadas por grandes problemas, mas nada que não possa ser superado.

                 22. Mas, nessas pequenas crises (permitam-me citar a cisma do Habblet, as discussões entre clérigos nas redes sociais, as exposições de membros do colégio de cardeais), esperasse que sejam tomadas atitudes imediatas. De fato, vivemos em tempos de grande imediatismo, onde queremos tudo para ontem. E, nessas crises, esquecemos de olhar para o lado dos outros.

Como iniciar o processo de cura?

                 23. É inegável que as vezes o melhor é cortar o mal pela raiz. Infelizmente, tornou-se costume entre os clérigos, colocar que a raiz do problema é cardeal X ou o bispo Y. Observando profundamente toda a situação, constato que não há uma raiz do problema, na verdade se há uma raiz, essa deve ser procurada em muito tempo atrás, na história da Igreja. É fato que ainda hoje existem pessoas no clero que não são das mais santas, mas, será que exonerar ou expurgar alguém da Igreja seria realmente o melhor? Será que esse seria o corte do mal pela raiz?

                 24. Creio que o cortar o mal pela raiz não seja o melhor no momento. Seguindo os passos e ensinamentos de nosso Senhor, somos chamados ao perdão, chamados ao entender o lado do outro, e entendermos, sobretudo, que todos nós estamos suscetíveis ao pecado. Incontestavelmente, nosso Senhor Jesus e sua santíssima Mãe, a Virgem Maria, são os dois únicos seres humanos que não tiveram pecado algum. Todos aqueles que apontam os erros dos outros, esquecem seus próprios pecados.

                 25. Mas, não é porque não temos pecado que somos proibidos de corrigir os outros? É o próprio Jesus que nos ensina a corrigir o nosso irmão, primeiro em silêncio, depois com mais alguém, etc., mas é este o ensinamento de Jesus. Ele próprio condena o atirar pedras, que se tornou popular nos últimos tempos, quando Ele vai em socorro da mulher adultera. Alguns acreditam, que quando Jesus começa a escrever no chão, após dizer que quem não tivesse pecado deveria atirar a primeira pedra, Ele começa a escrever os pecados dos que ali estavam.

                 26. Portanto, para fazermos esse processo de conversão profunda e sincera dos nossos irmãos, somos primeiro chamados a olharmos para a sua realidade. Compreendermos sua fraqueza, e levarmos eles a compreenderem o mal que causam a si mesmos e a Igreja. Da parte da Igreja, nós devemos ver aqueles que estão suscetíveis a corrupção financeira e afasta-los dos ofícios que os beneficiariam. Devemos ver os suscetíveis a corrupção sexual, seja ela heterossexual ou homossexual, e lembra-los da fragilidade da fé dos nossos irmãos, que pode ser abalada.

                 27. Punições devem ocorrer se se fizerem necessárias, elas nunca devem ser o primeiro passo. O primeiro caminho a ser realizado é sempre o caminho do diálogo. Infelizmente nem com todos pode-se prosseguir por este caminho, pois alguns estão tão cegos em suas próprias corrupções, não apenas sexual e financeira, como já muito expus, que não são capazes de ver o erro.

O coração fechado
                 28. Como o povo do antigo testamento, muitas vezes permanecemos com o coração fechado. Assim é o corrupto. Normalmente ele está com o coração fechado a graça do Senhor, já não se deixará mais transformar, nem mudará pelo bem da Igreja.

                 29. Quando alguma coisa começa a cheirar mal, é porque existe um coração preso sob pressão entre sua própria autossuficiência imanente e a incapacidade real de bastar a si mesmo; há um coração podre por conta da excessiva adesão a um tesouro que o aprisionou. [3]
                 30. E quantas vezes o tesouro que o corrupto se aprisionou não é a si próprio? Nesses casos, se mesmo após muito esforço, o coração corrupto não se abrir a graça por sua própria vontade, ele deve ser aberto a força. É preciso criar nesse coração o amor, ensina-lo a dar sentido ao que faz e sentido a sua existência, sentido a Igreja.

O abandono

                 31. A triste realidade, é que se tudo que for tentado para mudar aquele ser corrupto não adiantou, ele deve ser exonerado aos poucos, e por fim, retirado do clero. Mas para isso, é preciso um longo tempo. É preciso constatar-se que verdadeiramente não há jeito de realizar naquele coração fechado a mudança. Não se deve abandonar aquele que está cego, mas se ele não se permite ser ajudado, a Igreja deve evitar maiores escanda-los.

CONCLUSÃO
                 32. Em toda a História da Salvação o povo se fechou a vontade de Deus, fechou olhos e corações, e tornou-se corrupto. Por isso, a corrupção está em todas as áreas da sociedade. Do mesmo modo, a corrupção, existente em todas as áreas da Igreja, pode chegar aos seus pontos extremos. Ela é sempre consequência do pecado e da falta de amor, e vai vagarosamente fechando os olhos dos indivíduos.

                 33. A forma de correção dos corruptos, mostra muito do nosso ser cristão. Corrigir os outros, com carinho e amor, mostra o amor de Deus aos que não tem amor, e nos corrige também. É preciso lembrarmos sempre que nenhum de nós é perfeito e todos estamos suscetíveis aos pecados, e nem sempre temos forças de nos levantar.

                 34. Corrupção fere o amor. Corrupção vende, prostituí, destrata, mente, prejudica, mancha. Toda forma de corrupção deve ser trabalhada, a fim do bem do próprio corrupto e da Igreja.

                 35. Nossa missão a partir de agora deve ser tratar todas as formas de corrupção com uma verdadeira atenção e com discrição. Devemos ajudar aos nossos irmãos, pois é essa nossa missão. Existimos justamente para amarmos e sermos amados. Amar também é ajudar, é cuidar daqueles que precisam da nossa atenção especial.

                 36. Seguir os ensinamentos do Senhor, praticar as suas obras, é o único caminho para sermos reconhecidos como bons e fiéis servos, convidados a participar de sua alegria. Sua alegria é ver todas as ovelhas unidas. Sua alegria é sua Ceia Pascal, instituída pela remissão dos pecados que trouxe ao povo. Nós, que tivemos o encontro pessoal com esse Senhor, redentor dos pecados, permanecemos sendo interpelados a levar os outros a esse encontro pessoal. Encontro pessoal com o Mestre é um encontro transformador, que muda completamente nossa vida e existência. Encontro pessoal com o Mestre é como o encontro da Virgem Maria com o seu Filho, que desde sua concepção mudou completamente a vida de sua Santa Mãe. Encontro pessoal com Cristo é a experiência dos discípulos, é também a experiência de todos os que foram salvos pela sua Páscoa. Sim, pois Ele vem! Vem fazer novas todas as coisas! E após fazer nova todas as coisas, ele nos espera na porta dos céus para nos dizer: “Servo bom e fiel, venha participar da minha alegria!”

Dado e Passado em Roma, na Memória da Apresentação de Nossa Senhora, vigésimo primeiro dia do mês de novembro do Ano do Senhor de dois mil e dezoito, primeiro de Nosso pontificado.
+ Ioannes Pp ll
SERVUS SERVORUM DEI


[1] Pastores Dabo Vobis, n.2

[2] Entenda a corrupção com base nas palavras do Papa Francisco, Canção Nova

[3] Corrupção e Pecado, Papa Francisco